ARTIGOS
Vinho novo em odres velhos
Sérgio Jacomino*
A Nota da Casa Civil da Presidência da República
fez referência expressa a aspectos relacionados
com a atividade registral.
Seu inteiro teor será submetido a todos os diretores
e conselheiros do Instituto que deverão pronunciar-se
sobre o assunto. Oportunamente, publicaremos aqui a
posição oficial do Irib.
Enquanto isso, para alimentar o debate e favorecer
a franca troca de idéias e opiniões, permito-me
tecer, em caráter pessoal, algumas considerações.
A leitura superficial do documento mostra que, salvo
melhor juízo, o autor não enfrentou com
a costumeira precisão os termos dos dispositivos
atacados.
No caso da averbação de memorial descritivo
do imóvel rural no serviço de registro
de imóveis (parágrafo terceiro do art.
9 da minuta), o autor pondera que houve extrapolação
da matéria legal.
Mas não é assim.
Diz o assistente jurídico que "o registro
e a averbação não se confundem,
pois essa tem caráter acessório daquele,
e o registro de imóvel requer a juntada de documentos
que nem sempre serão objeto de averbação
ou do próprio registro".
Na verdade, a supressão dos §§ 3o
e seguintes destrói a idéia de se colmatar
a lacuna verificada na Lei 10.267/2001, que não
dispôs, de forma clara, sobre o aperfeiçoamento
descritivo dos imóveis matriculados sem que se
devesse obrigatoriamente recorrer ao custoso e demorado
procedimento judicial previsto no art. 213 da Lei 6.015/73.
A Lei 10.267/2001 faz pressupor a desnecessidade do
procedimento retificatório judicial por uma única
e bastante razão: todos os imóveis rurais
deverão ser descritos e caracterizados com o
rigor previsto no § 3o do art. 176 da Lei 6.015/73
toda vez que houver qualquer alienação
(§ 4o). Obstar-se o registro da alienação
de todo e qualquer imóvel rural e sujeitar os
interessados a um procedimento judicial soa pouco razoável,
mesmo impraticável.
Mas como superar esse impasse?
O acessório é o principal.
Diz o assistente jurídico que o registro e a
averbação não se confundem, o que
poderia sugerir um acaciano truísmo, não
fossem os exemplos de completa confusão hauridos
da própria lei 6.015/73 e de diversos outros
diplomas legais – alguns recentes, sugerindo que
o mesmo escrúpulo sistemático não
é regra no criativo furor normativo.
Em todo o caso, concordando com a lição
ilustrada de que a averbação é
ato acessório do registro, não se pode
concordar com a conclusão do ilustre parecerista.
Neste caso preciso, a averbação seria
absolutamente de rigor, tivesse ou não o decreto
comandado esse ato acessório.
Vamos por partes.
A própria Lei 10.267/2001 faz referência
ao art. 246 da Lei 6.015/73 que, no particular, dá
ensanchas, confortavelmente, para a regulamentação
pretendida. No item 4 do inciso II do art. 167 da LRP
há expressa previsão para o desmembramento
– uma das modalidades de parcelamento do solo
rural, hipótese contemplada no § 3o do art.
176 da Lei 6.015/73, alterado pela Lei 10.267/2001.
Há exigência simétrica de instância
ou rogação do interessado.
Mas não é só. Respondendo especificamente
ao outro argumento do parecerista, a Lei 6.015/73 encerra
um sistema de numerus clausus dos fatos inscritíveis,
especialmente dos atos de registro stricto sensu. (contra:
Ricardo Henry Marques Dip e Sérgio Jacomino).
Mas no caso de averbação, parece haver
uma certa concordância da doutrina de que se trata
de um sistema de numerus apertus, pela redação
aberta do artigo 246 da Lei 6.015/73 – "além
dos casos... outras ocorrências que, por qualquer
modo, alterem o registro". Vale dizer, além
do elenco que se pretende taxativo e exaustivo, há
ocorrências que eventualmente podem alterar o
registro e a lei não diz quais sejam nem as limitam.
Ora, a alteração da descrição
do imóvel rural, decorrente da hiper-especialização
do bem pelo levantamento georreferenciado, é
ocorrência mais do que relevante que altera o
registro. Porque? Primeiro, porque a descrição
que inaugura a matrícula é ato de registro
lato sensu. A matrícula é ato de registro.
Portanto, alterar a descrição do imóvel
é alterar o registro. Depois – e aqui respondendo
especificamente ao Prof. Dr. Jürgen Philips –
o § 3o do art. 176 da Lei 6.015/73 absorveu inteiramente
o item 3, inciso II, §1o do art. 176 da LRP. Assim,
a identificação do imóvel (características,
confrontações, localização
e área) será decorrência direta
do levantamento que contenha as coordenadas georreferenciadas.
Inclusive a área, conseqüência direta
e sempre dependente dos valores das coordenadas.
Insisto que a averbação contemplada no
§ 3o do art. 9o do Decreto é procedimento
que se desencadeia automaticamente, seja a pedido do
interessado ou mesmo decorrente de retificação
judicial. Esse procedimento é hoje praticado
por todos os registradores imobiliários do país
quando, por qualquer motivo, se faça qualquer
alteração na descrição do
imóvel. O que o Decreto pretendeu foi, tão-somente,
explicitar o que se acha enunciado na Lei 6.015/73.
Retificação de registro – uma imagem
vale por mil palavras
Já a acenada inconstitucionalidade do art. 16
da minuta é matéria que demanda maior
cuidado.
Eu próprio já havia advertido, nas discussões
que antecederam a redação do projeto que
culminou na Lei 10.267/2001, que a retificação
de registro seria a pedra de tropeço da iniciativa,
pois não havia qualquer dispositivo, no anteprojeto,
que contemplasse as situações a que o
parecerista aludiu e outras mais, como a genérica
disposição do § 2o do art. 213 da
Lei 6.015/73.
Mas as suas objeções devem ser temperadas
com bom-senso.
Primeiramente, estranhando que o parecerista atacasse
o art. 16 do projeto e tivesse se olvidado do art. 9o,
cuja redação é simétrica
àquele. Trata-se de explicitação
da dispensa do procedimento judicial para inauguração
de nova descrição do imóvel.
Depois, as hipóteses contempladas na minuta
do decreto não prefiguram conflitos de interesses,
lide em sentido próprio, mas ao contrário,
enfatizam a concordância de interesses dos confrontantes
e do proprietário (§§ 3o e 4o do art.
9o), o que afastaria a interpretação mais
gravosa de obliteração do devido processo
legal.
Uma releitura atenta do art. 213 da LRP., menos dependente
de um certo paternalismo judicial que a todos prejudica
(inclusive e principalmente o Judiciário, que
se vê assolado de demandas), poderia iluminar
aspectos entranhadas na viciada práxis cartorial.
Voltemos à lei - como se recomenda com os clássicos:
vamos ao texto!
"Art. 213 - A requerimento do interessado, poderá
ser retificado o erro constante do registro, desde que
tal retificação não acarrete prejuízo
a terceiro".
Este dispositivo é perfeitamente harmônico
com os §§ 3o e 4o do art. 9o. Temos a rogação
do proprietário (§ 3o), o erro constante
do registro (a mudança de paradigmas na identificação
do imóvel visa "purificar" o registro
das imperfeições decorrentes de métodos
ultrapassados de determinação) e a ausência
de prejuízos a terceiros (§4o).
Nunca é demais lembrar que, não havendo
concordância, os interessados deverão ser
remetidos às vias ordinárias e jamais
qualquer dos intervenientes ficará privado da
via jurisdicional para solucionar seus conflitos.
"§ 1o – A retificação
será feita mediante despacho judicial, salvo
no caso de erro evidente, o qual o oficial, desde logo,
corrigirá, com a devida cautela".
Esse dispositivo sempre esteve condicionado por uma
interpretação extremamente restritiva.
A lei não indica de onde pode exsurgir o erro
que se torna então evidente. Do título?
Do registro? Ambos? Desconsidero, aqui, propositadamente,
uma respeitável construção doutrinária
que pôs um espartilho confortável para
condicionar a retificação sempre pela
via judicial. Problematizo-a. O erro evidente, que se
torna explícito e perfeitamente perceptível
pelos instrumentos que a lei 10.267/2001 criou, pode
ser corrigido pelo oficial do registro, com a cautela
de verificar a concordância dos confrontantes.
(Erro aqui deve ser entendido em seu sentido próprio
de incorreção, inexatidão. Daí
que se possa adequar o procedimento de retificação
àquelas situações em que se apura
uma inexatidão do registro pela tradução
matemática dos levantamentos georreferenciados.
Retificar é, pois, pôr em linha reta, endireitar,
tornar o registro reto, certo.
Mas o maior problema está, logo se vê,
no § 2o:
"§ 2o – Se da retificação
resultar alteração da descrição
das divisas ou da área do imóvel, serão
citados, para se manifestar sobre o requerimento, (...)
todos os confrontantes e o alienante (omissis)".
É preciso, para não infirmar toda a sistemática
da Lei 10.206/2001, uma interpretação
que deposite toda a ênfase no caput do art. 213,
pois o erro constante do registro, desde que não
acarrete prejuízo a terceiros, poderá
ser feita pelo próprio oficial registrador. Os
parágrafos seguintes do art. 213 simplesmente
modulam a regra, criando procedimentos adicionais quando
não se verificar a justa hipótese do caput.
Assim, a alteração da descrição,
divisas ou área, será sempre judicial
quando se verificar a existência de conflitos
e prejuízos. A regra de socorrer-se do procedimento
judicial deverá ser, então, excepcional.
Para desencadeá-lo, ter-se-á o conflito
atual, não a sua presunção potencial.
Inverte-se a presunção - como aliás
em boa hora se faz com o registro da penhora. Dá-se
a presunção iuris tantum de não-conflito
quando os interessados comparecem ao notário
(§ 4o) e manifestam sua vontade livre das peias
burocráticas. Trata-se, no limite, da recuperação
do sentido da livre disposição de direitos
e autonomia da vontade. Se o confinante pode extrajudicialmente
o mais (alienar), por qual razão não poderia
o menos (retificar ou permitir retificar)?
O procedimento de retificação de registro
é de jurisdição voluntária.
Está na hora de perfilar-se com os modernos sistemas
do mundo que reconhecem, sem estremecimentos, que o
ministério notarial e registral são jurisdição
voluntária.
Prospectando a Lei ou a covardia dos pensamentos baratos.
A advertência desse impasse está feita
com todas as letras. Já antevimos essa discussão,
que mal se instaura entre nós - o que dirá
dos demais profissionais que não atuam diretamente
com o mister registral e notarial?
Devemos considerar seriamente a hipótese de
o Judiciário não sufragar o entendimento
da dispensa da retificação judicial, pois
a última palavra será a de nossos magistrados.
Nesse caso, como cumprir a Lei?
A sistemática da Lei exige um afrouxamento dos
anéis burocráticos. De outra forma, se
se admitir plenamente o entendimento de que a via judicial
é incontornável, teremos um colapso. O
§4o do art. 176 da LRP exige o levantamento para
toda e qualquer "situação de transferência
de imóvel rural". Ora, alguém duvida
que a identificação feita com os rigores
técnicos agora exigidos acarretará uma
inconciliável incongruência descritiva
entre o memorial e o registro? O código subjacente
mudou; a linguagem se articula em outro nível.
Temos uma nova semiologia: a descrição
do fenômeno natural já não se apóia
no receituário imperfeito da descrição
literal mas é traduzida em coordenadas dos vértices.
Penso que uma alternativa poderia ser a coexistência
das linguagens e de seus resultados numa instável
implicação. Ao lado da descrição
tradicional, que orna os umbrais das matrículas
prediais, poderíamos insinuar a novilíngua
vetorial, com seus signos geométricos e matemáticos
impenetráveis para os olhos laicos dos registradores.
Assim, por averbação, a descrição
do memorial descritivo exigido pelos §§ 3o
e 4o do art. 176 da LRP se insinuaria na matrícula,
seguro que não haja conflitos entre os interessados
– ao menos formalmente, cumpridos os preceitos
dos §§ 3o e 4o do art. 9o do decreto em gestação.
Não se fará, como chegou sensatamente
a sugerir o Presidente da AnoregSP, Ary José
de Lima, o descerramento de nova matriz predial, com
o encerramento da anterior que continha a descrição
ultrapassada. Ficamos com a parábola –
vinho novo em odres velhos. Ou seja: manteremos as duas
descrições, até que haja uma natural
decantação.
Quando se alienar o bem (ou gravá-lo com direitos
reais limitados ou de garantia) a referência será
a... a... ao que mesmo? À matrícula? Ao
imóvel matriculado? Ao cadastro? Penso que a
referência se fará ao imóvel matriculado,
com a identificação baseada em ambos os
procedimentos.
Ao cadastro o que é do cadastro
O erro essencial desse projeto que redundou na Lei
10.267/2001 foi a timidez. Ou a insegurança de
lançar-se no mar proceloso das decisões
acertadas. Abusando mais uma vez das parábolas,
devemos dar a César o que é de César.
Os dados cadastrais são do cadastro. A ele incumbe
o zelo e a guarda dos dados identificadores das parcelas.
Fazer do registro o depositário de uma coleção
de variáveis que vão definir a figura
do imóvel é insistir no erro de que o
registro pode ser o cadastro – o que acarreta,
por via de uma lógica cruel, que pretendam (e
não são poucos) que o cadastro possa ser
o registro! Vejamos como o Ministério do Desenvolvimento
Agrário nos apresenta a Lei 10.267/2001: "Lei
de criação do Sistema Público de
Registro de Terras". O Registro Público
da Lei 6.015/73 não era assim tão público?
E o cadastro do INCRA agora é o registro de terras?
E o registro de imóveis, não é
registro de terras? E o cadastro, o que é?
O ex-futuro Decreto buscava assinalar um senda luminosa
para a conexão do cadastro com o registro. A
lei indicava o intercâmbio de dados entre as instituições
cadastral e registral. A porta de entrada, como se desenhou,
era o registro (art. 22, § 7o da Lei 4947/66 c.c.
art. 176, §§ 3o e 4o da Lei 6.015/73). Pelo
decreto criou-se uma parada antes do destino: o INCRA
certificaria que a poligonal objeto do memorial não
se sobreporia a qualquer outra constante de seu cadastro.
Vê-se que a parada antecipada no cadastro é
lógica e coerente e visa confrontação
de dados com o próprio sistema cadastral (art.
9o, § 1o, in fine). Próxima parada, o registro,
já com algumas amarras (§ 2o). Depois, novamente,
o cadastro (art. 22, § 7o da Lei 4947/66), depois
o Registro (§ 8o da mesma Lei) e depois de tudo
isso o mundo gira, a Lusitana roda (é assim mesmo,
como se dizia na minha infância).
A dança de dados serve ao ruído, à
imperfeição, à eventual necessidade
de retificação da retificação.
Como se vê, andamos às voltas, mais uma
vez, com uma resposta à caça de uma boa
pergunta. Chegamos a conceber a distinção
essencial entre as instituições cadastral
e registral consagrando uma lei que confunde o dedo
com a lua, o cadastro com o registro. Ou o registro
com o cadastro, a lua com o dedo.
Lanço algumas reflexões baratas e insones
para alimentar o debate. O parecer do assistente jurídico
traz muitas dúvidas e perplexidades. Procurei
enfrentar apenas alguns aspectos de seu arrazoado, aqueles
que mais de perto referem o registro de imóveis.
Vou abrir, como anunciei logo acima, o debate interno,
buscando a opinião dos mais doutos e daqueles
que, pelo conhecimento e experiência, podem contribuir
para a superação dos impasses que se anunciam.
* Sérgio Jacomino é o Presidente do Irib
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